Recordar o romance de Fareleira Gomes: "Quando um Anjo Peca"

Hoje tiramos do baú um trecho do romance “Quando um Anjo Peca” de Fareleira Gomes (edição da C. M. Aveiro, 2001), romance que se desenrola em terras de Alfeizerão no período do ocaso da monarquia, e cuja leitura vivamente recomendamos. Dessa obra, existe um exemplar autografado pelo autor no Fundo Local da biblioteca e outros quatro exemplares no fundo geral da biblioteca que podem ser requisitados pelos leitores interessados.

«Saindo-se do solar “Vila de Ló” e caminhando cerca de quinhentos metros, entrava-se numa área da herdade onde se podia meditar. Ali foi criado um pequeno jardim que transmitia a alma do seu jardineiro. Flores de muitas espécies emprestavam ao local um colorido deslumbrante e um forte e apetecível cheiro a natureza.
«Bem resguardado de todo o reboliço agrícola, ali se ouvia o silêncio, e as pessoas que tinham o privilégio de o frequentar, ficavam em paz consigo e com os outros. Num recolhimento profundo, havia sempre o consolador som do distante tocar dos sinos da capelinha de Santo Amaro, do zumbir das abelhas na procura daquele sossegado pólen, do chiar esporádico das rodas de um carro de bois, que ao longe passava, do coaxar das rãs que proliferavam num minúsculo casal, o “Casal das Rãs”, que albergava meia dúzia de casas, não muito longe dali. Aquele jardim fornecia cor e alegria campestre à tristeza fúnebre de um minúsculo cemitério que existia a pouca distância. Seis frondosos carvalhos guardavam a memória dos que ali estavam sepultados».

Cadernos do Baú 1 - o poema de José Câncio

O primeiro dos Cadernos do Baú dá a conhecer uma narrativa em verso de feição popular sobre a História de Alfeizerão que é devida a um autor da Macalhona, José Câncio, também conhecido por José Catarino.
O propósito de iniciarmos estes Cadernos é o de elaborarmos algumas pequenas publicações dedicadas a um motivo específico dentro de um tema mais alargado, que poderá ser, por exemplo, um texto histórico, um poema ou uma lenda de fundo local ou um artigo de jornal de que poucos se lembrarão.
Ainda que quase tudo orbite em torno dos meios e plataformas eletrónicas, estes Cadernos estão pensados para terem uma existência física circunscrita com folhas impressas e agrafadas ao jeito de um pasquim, que poderão ser lidas na biblioteca do Espaço Cultural Baú das Memórias, não se descartando a possibilidade de ser colocada uma cópia de cada um dos Cadernos em outros lugares de foro público como a Casa do Povo, Junta de Freguesia, Centro Social e Paroquial ou a Misericórdia de Alfeizerão.
O caminho ditará os passos que se seguirem.

Ficheiro em anexo:

De Carlos Casimiro de Almeida, uma passagem do seu romance “Cicatrizes” (p. 180), publicado em 2015 em edição de autor

«[O Rugas senta-se na mesa da cozinha] O mata-bicho vem devagar, mais lento e reduzido que o cortejo descendente do magote humano que reverente vem dos outeiros, vestindo roupas de ver o Senhor: os mais abastados fazem ouvir na estrada o trote de ferraduras cavalares, o rodado da charrete fere o pavimento, uma velha vem sentada de lado sobre a albarda da burra, tão cansada quanto ela; os rapazes parecem loucos, vertiginosamente descendo em competição de bicicletas. Porém o grosso da coluna vem a pé, numa procissão contínua, batendo o compasso dos protetores metálicos colocados nos sapatos novos para evitar o desgaste do uso.
«Calapeiros lhes chamam, e ninguém sabe porquê, perdida a memória da rude prática alimentar dos marinheiros, quando a tartaruga marinha comida a bordo na sua própria concha era fonte de proteínas e vitaminas! O século XVII assistiu ao fim das Descobertas e levou à fixação dos mareantes nos outeiros: a refeição de calapê atirou-se sobre os cágados abundantes nos sapeiros do Marete – os arcaicos sapos-conchos da memória.
«Vêm pelas fráguas do vale os vindouros dos comedores de calapê, pelas escarpas do moinho abacial, enlameadas e pedregosas. Chegados ao cruzamento com a estrada real, onde, dizem os antigos, outrora as diligências mudavam de cavalos entre Caldas e Alcobaça, as raparigas casadoiras trocam de calçado. As mães desembrulham do avental os sapatos domingueiros, e elas, mão esquerda apoiada no ombro uma da outra, procedem à operação. Os sapatorros de couro, apropriados aos caminhos e ao trabalho, ficam a secar sobre um murinho de pedra, vestígio, dizem os presumidos, da conduta moura que outrora abastecia de água o castelo».